quarta-feira, 15 de setembro de 2010

(RE)LIDO #25


O VOO MELANCÓLICO DO MELRO
de Carlos Tê, Assírio & Alvim, 1999

"(...) Contaram-me que um dia Salomão levou um gira-discos a pilhas para uma obra e pôs os serventes a ouvir os Beach Boys enquanto chapavam massa. O mestre deu com ele a dançar o Good Vibrations e insultou-o com rude jargão operário, mas ao chegar ao grau de "cabrão" levou com uma bobina de cabo multifilar na cabeça que o deixou sem saber quem era durante dias. (...)"

Sempre tivemos em Carlos Tê um exemplo raro de grande letrista em português. No caso da pop, só o Rui Reininho esteve, durante alguns anos, ao mesmo nível e não há que enganar quanto à sua qualidade inata de contar histórias e fixar personagens (ex. Chico Fininho). Essa capacidade de nos pôr a imaginar cenários e situações, como se revela no hilariante excerto acima transcrito, permitiu a toda uma geração, na qual nos incluímos, sonhar ao som de "A Ilha", "Sei de uma Camponesa" ou o incontornável "Bairro do Oriente" na voz de Rui Veloso...
A estreia em ficção de Carlos Monteiro, Carlo Tê para todos nós, é, por isso, uma extensão sublime das pequenas narrativas contidas em tantas e tantas canções de Veloso ou até dos Clã. No caso, trata-se de um retrato fabuloso de uma geração pré-25 de Abril, de narração múltipla, onde vários personagens masculinos nos enredam rapidamente em circunstâncias sócio-políticas ou económicas, muitas delas, certamente, autobiográficas. A censura, a igreja, o sexo reprimido, as mulheres, o desencanto de horizontes, a guerra ou a droga, são problemas abordados com tanto sentimento, humor e paixão, que um qualquer dos personagens podia ser um nosso irmão mais velho "libertado" com o 25 de Abril. E depois há, obviamente, a música que flutua ao longo de toda a prosa. Um dos narradores inicía sempre os capítulos do seu diário com o título de uma qualquer canção de Bob Dylan, dos Beatles, dos Kinks, do Adamo ou até um fado da Amália ouvida num baile de paróquia, num ensaio da banda, num quarto entre discos de vinil ou por sugestão de uma emissão de rádio. Juntam-se depois aqueles deliciosos pormenores de época com o Porto ou a Granja como cenário de fundo e que tanto pode ser uma referência ao Ademir, o tal jogador do Porto que deu o Campeonato ao clube ao fim de dezenas de anos, uma camisa Triple Marfel, um fogão Leão, uma Coca-Cola trazida às escondidas de Vigo ou o Melody Maker comprado na Rua de Santo António. Sim, porque a rua só haveria de voltar a ser de 31 de Janeiro depois do 25 de Abril, revolução abordada, aliás, de forma sábia neste romance e que nos permite perceber melhor a geração de políticos ainda hoje instalados.

Um livro surpreendente, intenso e tão bem escrito que é quase um segredo. Já salivamos por um novo romance, tarefa, ao que parece, entretanto iniciada. Sem perder tempo, enviamos um email S.O.S. na tentativa de não perder o rasto a um escondido caderno de contos da sua autoria...

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